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Lugar da Bíblia é na igreja, não no governo

Símbolos ou ritos de qualquer credo não deveriam figurar em espaços públicos

Em 15 de novembro, data que celebra a

 Proclamação da República 

, marco da separação entre religião e Estado, os ministros do

 STF (Supremo Tribunal Federal) 

Cristiano Zanin e Flávio Dino votaram contra um recurso do Ministério Público Federal. O recurso, com base no princípio da laicidade estatal, pedia a remoção de símbolos religiosos de órgãos públicos.

O debate sobre a presença de símbolos religiosos em repartições públicas não é recente. Em 1871, dois anos após a Proclamação da República, Miguel Vieira Ferreira, pastor da Igreja Evangélica Brasileira, foi convocado para compor um júri no

 Rio de Janeiro 

.

Ao comparecer, Miguel pediu a retirada do crucifixo da parede do tribunal. Seu pedido foi negado, e ele foi multado. Mesmo assim, manteve os protestos por quatro sessões consecutivas, acumulando multas. O juiz responsável, Honório Teixeira Coimbra, consultou o então ministro da Justiça, Barão de Lucena, que determinou a permanência do crucifixo.

Hoje, o STF volta a discutir a questão, agora com foco no crucifixo e também na

 Bíblia 

, cuja presença em instituições públicas tem ganhado destaque devido ao crescimento da

 população evangélica 

no Brasil. Esse debate inclui leis municipais que promovem a leitura da Bíblia na abertura de sessões legislativas ou sua presença em bibliotecas escolares, acompanhada, muitas vezes, de leituras em sala de aula.

Do ponto de vista da separação entre religião e Estado, símbolos ou ritos de qualquer credo não deveriam figurar em espaços públicos. Isso garante o respeito aos direitos de cidadãos não religiosos e protege a própria liberdade religiosa. Contudo, essa relação nem sempre é clara para os próprios religiosos.

Embora os defensores da introdução da Bíblia em órgãos públicos frequentemente aleguem seu valor cultural, o argumento é frágil. Imagine um professor que, ao abordar o livro bíblico de Gênesis sob o método histórico-crítico, apresente Adão e Eva como personagens mitológicos. Qual seria a reação de alunos ou pais religiosos?

Esse cenário expõe as tensões entre o valor cultural alegado e o objetivo religioso implícito, que muitas vezes flerta com o proselitismo, violando o princípio constitucional de neutralidade religiosa.

Curiosamente, os evangélicos de hoje não se opõem ao crucifixo em espaços públicos, diferentemente do pastor Miguel Vieira Ferreira e de gerações anteriores. Atualmente, ações pedindo a remoção de símbolos religiosos geralmente são movidas por ateus. Essa mudança de postura evangélica reflete, talvez, não uma revisão teológica sobre idolatria, mas um desejo crescente de ocupar espaços políticos e sociais, incluindo a introdução de símbolos de sua fé.

Sem fazer juízo de valor das intenções dos proponentes de leis que introduzem, por exemplo, a Bíblia em escolas ou câmaras de vereadores, é fato que se espera que a leitura do livro sagrado produza efeitos religiosos em seus ouvintes. Se for assim, trata-se de fato de proselitismo, o que fere o princípio constitucional de não privilegiar uma religião em detrimento das outras.

Não é ilegítimo que os evangélicos aspirem aos privilégios que antes eram exclusivos dos católicos. A questão, porém, é se isso é compatível com a Constituição de uma república laica. De minha parte, concordo com Miguel Vieira Ferreira: o lugar do crucifixo é no templo católico, e o espaço para a leitura da Bíblia é na igreja.